O lugar de José Ivacy

O lugar de José Ivacy

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A família de José Ivacy chegou a Sobradinho em meados da década de 1960. Seu pai trabalhava no campo e teve que deixar para trás a vida em Morada Nova de Minas. As águas do Rio São Francisco haviam sido represadas para a criação da hidrelétrica de Três Marias, inundando boa parte da zona rural do município.

Do campo para a estrada, o pai virou caminhoneiro. Sua família jamais recebeu um tostão de indenização. Mas, aqui em Sobradinho, Ivacy acabaria encontrando nas brincadeiras de criança a sua profissão como artista. E construiria a própria casa. Aliás, construiria a própria casa por duas vezes.

A primeira de suas casas, Ivacy havia projetado para uma aula prática do curso de arquitetura da Universidade de Brasília. Aproveitando um material abundante na região de Sobradinho, a madeira de eucalipto, e também a mão de obra especializada em serralheria, que ali não faltava. 

A casinha em forma de caracol foi erguida, em 1988, onde ficava a antiga sede da Fazenda Bela Vista. Tudo era pasto. Não havia luz elétrica. Nem vizinhos. Um único ônibus, conta Ivacy, cruzava a rodovia DF-150 pela manhã no rumo da Fercal. E um segundo ônibus passava no sentido contrário, já de noite. 

A Fazenda Bela Vista inteira, ao longo dos anos seguintes, foi sendo repartida e vendida, novamente repartida e revendida, num pequeno episódio da história da ocupação do solo brasiliense. A região onde antes só havia mato hoje atende por Setor Habitacional Contagem. São as franjas da cidade de Sobradinho II. 

Os caminhões continuam passando. Os ônibus têm sido mais frequentes. Daqui para pouco serão as vans da segunda edição do projeto BSB Plano das Artes que subirão a serra para encontrar José Ivacy. Dias 30 e 31 de maio, 1 e 2 de junho.

Porque a segunda casa que Ivacy construiu, em 1999, se tornou um ponto de encontro para amigos, artistas, entusiastas da arte contemporânea. Sua arquitetura de linhas modernistas, aço e vidro, brota entre as árvores da antiga Fazenda Bela Vista. 

No terceiro andar, Ivacy montou seu estúdio pessoal. No piso do meio, ele mora com a mulher e a filha adolescente. No térreo, estamos todos convidados para conhecer o Espaço ManoObra. Esse nome foi dado por Suyan de Mattos, artista que frequenta o círculo mais íntimo de Ivacy, assim como Arlindo Castro, Rômulo Andrade, Glênio Lima e Fernanda Pacca.

Espécie de mentor para Ivacy, Bené Fonteles é figura muito querida no Espaço ManoObra. Será justamente em torno das obras – e da biografia afetiva – de Bené que se desenrolará a exposição Eu O Outro, a ser aberta na tarde deste sábado 18 de maio, já sob a expectativa de receber os visitantes do BSB Plano das Artes.

Faltando poucos dias para a abertura, Ivacy faz a gentileza de interromper o processo de montagem da exposição por um par de horas para conversarmos sobre o ManoObra, sua vida e obra.

Subindo a escada de metal até seu estúdio pessoal, ele conta que foi autodidata na marcenaria e no artesanato – desde criança. Recolhia pedaços de madeira na rua para fazer carrinho de rolimã, aviõezinhos e entalhes. Na época de menino, sonhava em ser arquiteto. Até ganhou do pai uma prancheta. Certa feita, a mãe juntou dinheiro para uma bola de futebol, ele preferiu comprar três formões para trabalhar com madeira.

Existem diferentes tipos de inteligência. Como a habilidade motora pra chutar uma bola e saber jogar futebol ou a habilidade de ouvir um som qualquer e conseguir reproduzi-lo num instrumento musical. Eu tenho uma inteligência espacial e certa habilidade manual”, explica José Ivacy. “Toda criança tem uma forma de inteligência natural, precisa apenas de oportunidade e incentivo para poder desenvolvê-la.” 

Ele sabe bem do que está falando. Ivacy lecionou por décadas na Rede Pública do Distrito Federal. E antes mesmo de ter uma carreira formal como professor, ainda adolescente, já trabalhava com crianças. Seu primeiro emprego foi como monitor para menores carentes num projeto da então Secretaria do Bem-Estar Social, final da década de 1970. Passeava por Sobradinho com os meninos, andando pelas ruas, os olhos atentos para qualquer pedaço de madeira, restos de construção. A curtição era enxergar potencial expressivo mesmo no mais tosco material.

Quando prestou vestibular para arquitetura na UnB e não passou, resolveu cursar licenciatura em educação artística na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes. Ali conheceu a professora Alzira Barbosa, a quem deve um tanto da capacidade afetiva e do caráter lúdico necessários para ensinar arte às crianças.

De certa forma, na Dulcina, Ivacy pôde se tornar o professor que ele nunca teve. “Quando eu era menino, eram muitos os professores maus. Tive uma educação rígida, numa época de ditadura militar em que os professores eram muito vigiados. Eles eram duros com os alunos, davam com a régua na cabeça, davam com o apagador na cabeça, nos deixavam ajoelhados como castigo até conseguirmos resolver uma equação.”

Ivacy completou sua licenciatura na UnB. Dentro da universidade pública, pôde cursar boa parte das disciplinas que compunham a graduação em Arquitetura e Urbanismo. O que aprendeu naquelas aulas aprimorou sua intuição natural, ampliou muito seu repertório visual. Sofreu, porém, um baita desencanto. “Vi que era um curso para meninos ricos, para filhos de grandes empreiteiros que dali iam para o escritório do pai. Percebi que, como menino pobre, eu seria só um serviçal, não passaria disso, serviria apenas pra fazer as casas da burguesia lacustre.”

A trabalhar para os outros, Ivacy preferiu continuar trabalhando para si mesmo, levando sua vida à sua maneira. Num pedaço do terreno, pouco adiante do ManoObra, Ivacy levantou também uma oficina. É onde executa os trabalhos mais braçais de seu cotidiano como artista. Madeira e ferro, concreto e azulejos, aquilo que para muitos não passa de entulho é recebido com carinho por Ivacy.

Ivacy ainda gosta de andar pelas ruas de Sobradinho a recolher pedaços de madeira, restos de construção. “Minhas coisas são toscas, mas são assim por uma vontade de não fazer algo arrumadinho. Tenho muito respeito pelos materiais que utilizo, por suas formas, suas cores. Tento preservar a história de cada objeto, seu rastro, as marcas do tempo.”

A primeira mostra individual de José Ivacy, no final da década de 1980, aconteceu na Galeria Van Gogh, uma antiga biblioteca de Sobradinho que o agitador cultural Thomas Ritter transformara em espaço expositivo. O jovem artista apresentou colagens com penas de pássaros sobre papel artesanal. Nas décadas seguintes, participaria de exposições em Recife, Manaus, Campinas e Santos.

Por todo esse tempo, foi o trabalho como professor que manteve Ivacy e sua família. Nunca ganhava dinheiro com a arte que fazia, e garante que isso nem lhe ocorria. “Se alguma pessoa gostava de alguma peça que eu tinha feito, era uma satisfação tão grande, eu dava a peça para ela.”

Então foi uma surpresa e tanto quando Bené Fonteles apresentou José Ivacy à colecionadora e marchand Karla Osorio. Ela foi até Sobradinho duas vezes. Primeiro a convite de Bené. Depois para escolher quais obras de Ivacy ela apresentaria numa mostra individual em sua galeria no Lago Sul: Poéticas do Tempo, setembro de 2018. Karla também levou peças de Ivacy para a última SP-Arte e para a feira de Punta Del Este, Uruguai.

Aquele menino que brincava com pedaços de madeira é o mesmo que está aqui hoje, construindo e desconstruindo, vendo o efeito bonito de uma cor ao lado de outra cor”, sorri José Ivacy, satisfeito com as manobras da vida. “A arte é um prazer. Não tenho nada disso que ouço alguns colegas falando, todo aquele sofrimento do artista. Para mim, não tem disso. Nada é sofrido na arte.”

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